quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

O alho

Sou um seduzido pelas palavras. Acredito que, como as pessoas, têm a sua personalidade : há-as honestas, sinceras e exuberantes como as há mentirosas e até inúteis. Já na Escola não percebia por que é que a palavra «aguda» é grave, o «monossílabo» é polissílabo ou porque havendo o pretérito «perfeito» qual o interesse do «mais-que-perfeito». Como a Professora também não sabia envaideci-me com a minha ignorância. Desta minha sedução faz parte a palavra «alho». É tão simples (4 letras em 2 sílabas) como o que representa (só tem cabeça e dentes). E, no entanto, que riqueza de significados! Ignorante em linguística recorro-me do Dicionário (da Academia) :“planta hortense da família das liliáceas, de folhas lineares, flores brancas e cujo bolbo é composto de pequenos gomos, tem cheiro e sabor acentuados e se utiliza em culinária como condimento”, acrescentado algumas utilizações metafóricas.
Tudo bem, mas onde está expressa essa riqueza que lhe reclamo?
Quem a deve ter compreendido é Brunhoso ao conceder-lhe, no plural, foro de topónimo (por detrás do Cemitério, creio, não sei porquê visto que o seu cultivo era feito nas hortas). A utilização culinária do alho, em cru, cozido, estrugido, ou até assado, merecia honras pelo menos semelhantes às que se dão ao tomate («no tempo da tomateira não há ruim cozinheira»). Um assado de carne fica bem mais saboroso quando adormecida em vinha (não sei porque não em vinho) d’alhos. Há várias receitas de alheiras, com mais ou menos capoeira ou caça, mas já imaginaram uma alheira sem alho? Seria como um cotovelo sem co. Até as folhas verdes da planta (porretas) acrescentam a um prato de favas um sabor especial. Repare-se como é original e personalizada a receita da aplicação deste condimento aditivo : não é medido, como outros, em gramas, decilitros, colheres de sopa ou q.b. , mas em dentes.
Mas não é só em contexto culinário que o alho afirma o seu valor. Quando, por exemplo, alguém é considerado guicho, diz-se que é fino como um alho. Inversamente, se for obtuso e esquecido é um cabeça de alho chocho. Em contexto social até pode assumir interessante e útil expressão moderadora : se uma contenda algo azeda tiver um final apesar de tudo menos mau, o relator pode concluir sem que lhe mandem dobrar a língua : por fim acabaram mandando-se um ao outro para o alho... E ainda se aplica para recomendar clareza de pensamento e objectividade no que se diz, pois é bom não confundir alhos com bugalhos. Palavra pequena mas sempre de presença marcante : pode-se comer com algum exagero uma boa pratada de chicha ou de bacalhau mas fica-se a arrotar a alho. E ninguém se admire se, depois de apetitosa açorda de mariscos, a sua boca ficar a cheirar a alho. O que pode ser socialmente criticável mas é, dizem os antigos, o melhor (depois dos caldos de cobra) para atenuar esse maldito reumático. E como é que a minha mãe expulsava as lombrigas parasitas do meu inocente ventre? Com saborosas sopinhas de centeio,bem regadas com azeite cru e salpicadas com abundante alho bem picadinho por cima.
Embora não seja do meu particular agrado devo, como escrivão do alho que sou, fazer referência, ligeira como convém, a duas espécies espúrias:
1ª- não sei se por influência da emigração ou quê começou, em tempos, a aparecer o alho francês, que do verdadeiro alho só tem o nome.
2ª- antes de aparecerem os modernaços martelinhos, como é que as pessoas se saudavam cortêsmente nos festejos tripeiros do S.João? Com o alho porro, mas este nem para culinária serve e o adjectivo só no feminino é que tem alguma força.
Posto isto agora eu, ao escrever sermão que ninguém me encomendou, só não estarei a meter-me numa alhada porque, sendo este o forum com mais provedores por subscritor, beneficio de, até agora, não haver registo (não me perguntem porquê) do dito dos alhos. Mas se, entretanto, aparecer um intruso, não se resguarde de me arriar, nem que seja por, armando-me em sabichão na matéria, ainda o não ter convidado a provar os alhos da minha lavra. A ver vamos...

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