quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

A matança das minhas recordações

Que eu me lembre, naquele tempo em Brunhoso só eram conhecidas duas matanças : a dos inocentes, de há dois mil anos e a do porco, de agora. Daquela lembrava-se a malvadez de Herodes, esse facíonora degolador de crianças, cuja única culpa era terem nascido quando Jesus. A do porco era singular e única, digo-vos. Matavam-se cabritos e canhonos mas não era matança; matar capoeira (patos, pitas, perús e coelhos) era rotina. Até na festa de Santa Bárbara se matava uma ou mais vitelas e ninguém celebrava. Mas matar o porco é que era : dia marcado, reboliço em casa logo de manhãzinha, nervosismo e muita agitação nas mulheres, já que os homens, esses, primeiro, ainda vão acomodar as crias. Deixemos os antecedentes : já se sabe que o verdadeiro porco é criado, não mercado. Como se sabe que a criação é trabalho da dona (porque o porco não tem dono), que o faz com não excessiva atenção, é certo, enquanto leitão e larego (é só vê-lo crescer bem e engordar pouco) mas com esmero e cuidado (cabaças, nabos, bolotas e castanhas em abundância p’rá pia) quando for da ceva. Deixemos a decisão de não o capar a quem o quer berrão ou de não a capar a quem quer reprodução compensadora antes de ir ao sacrifício. Deixemos que vagueie com liberdade pelas ruas, que entre por currais e quintais muitas vezes não permitidos («côche, vai p’rá dona, que isto aqui não é teu»), que vá até às eiras na condição de vir pernoitar na loje. Deixêmo-lo, pois, em liberdade, a liberdade ilusória dos condenados. Agora aproxima-se o tempo de Natal, frio, frio a valer, que enrija a pele dos vivos e conserva as carnes frescas estendidas ou penduradas na despensa. Não há frio para o cevado que, anafado e lerdo mas sempre devorador, mal se move à volta da pia abundante, grunhindo ou roncando, insaciável, à espera de mais.
Deixemos, então, o antes e preparemo-nos para a matança, que será no curral, na curralada ou, até mais frequentemente, na rua, que o que é público é de todos. O ritual que vai iniciar-se pede preparação : antes de matar o bicho «mata-se o bicho» : bom carolo de trigo com linguiça e azeitonas, salpicão e presunto do pernil que ainda resta porque guardado para a ocasião, figos secos, aguardente, coisa leve porque um apetitoso prato de molejas não demorará a ser preparado pelas solícitas mulheres da cozinha. Que, coitadas, não param num vai-vem frenético mas descoordenado, topa-aqui, topa-ali, «fuge-me da frente, garoto», mais pelo receio de fracasso do que por exigência das tarefas.
Laçar o animal (corda no focinho) ainda no cortelho, tocá-lo calmamente para não o enervar até ao banco, deitá-lo, segurá-lo com a corda no pescoço, cruzar-lhe as patas trazeiras para, segurando uma, lhe retirar força da outra, exigem paciência, jeito, força e, sobretudo, acção coordenada. Três homens bem orientados chegam. (Não demorar muito as operações para não enervar matador e vítima). E, agora, é que vem a arte, a arte de espetar a faca (raros os que usam a navalha) não para matar de imediato mas para o sangrar bem sangrado, que as carnes querem-se limpas de sangue. A mulher apara e mexe sem parar o sangue que escorre aos gorgolhões ao ritmo do estertor do bicho, caindo em barrinhão com algum vinagre para não tralhar logo. E, por fim, a estocada final, o toque no coração, em golpe seguro e certeiro. E o porco «cuim-cuim» e eu aqui a arrepiar-me só de o escrever (mas livra-te de dizer «coitadinho», pode impedir a morte do animal). Mas, enfim, lá o consegui apelando à então para mim normalidade do acto que, depois, já com muita civilização em cima, viria a ouvir pela boca de sabichões que julgam saber tudo do que não sabem nada, ser uma crueldade, todavia praticada por homens pacatos e bons.
O que se segue é o chamusco : palha trilhada para cima, bem regulada para não lhe queimar o couro, facho de colmo a arder e bem firme nas mãos para controladamente chegar às partes menos expostas (orelhas, focinho, sovacos, unhas), água abundante, pequena cortiça a esfregar o chamuscado e navalhas bem afiadas a raspar os pelos que escaparam ao lume. Ali por perto, garotos extasiados acompanham, sorridentes e curiosos, o trabalho dos grandes. Já sabem que a sua glória será conseguir meter uma unha do porco no bolso de algum parceiro menos precavido e provocar a risada geral.
E o corpo teso e limpinho do animal ali está, pronto para o matador o abrir. São as tarefas do fazer : faz-se a barbada que traz o unto, faz-se o cu, com vossa licença, que é tarefa para os mais experientes e também deferência («faça favor, sr.Francisco»). Tripas para um cesto de vime, tapadas com toalha de linho verdadeiro, que as mulheres em breve irão para o ribeiro (não há falta na estação) fazer-lhes a limpeza completa. Terminaram os trabalhos, por hoje: sem tripas e sem miudezas o reco irá, em espeto próprio, para a despensa onde, em posição vertical, esperará até amanhã para ser desmanchado. Não terminou, porém, a matança, a não ser que esqueçamos o “jantar”, que inclui fumeiro bem curado do porco do ano passado e miudezas bem temperadas do deste, porque «o dia da matança do porco...é um bom pretexto para convívios e comilanças, que juntam à volta da mesa familiares, amigos e vizinhos, alguns vindos de longe para a festa» (“Festas e Comeres do Povo Português” -de Mª de Lourdes Modesto e Afonso Praça) ;a não ser que esqueçamos a acção de graças final («bendito, louvado e adorado seja o SSº
Sacramento do altar e a puríssima conceição da sempre Vigem Maria Senhora nossa, Deus que nos deu p’ra hoje que nos dê p’ra sempre e graça para o servir e a benção desta mesa, assim seja» ); a não ser que esqueçamos a suecada final onde, meu Deus, arrenúncias, carvalhadas,
arrotos e vinho em abundância completarão a festa que era o dia da matança.
E agora, sim, que a festa acabou, viva a festa, porque estou como o outro que diz «porco morto cevada ao rabo».

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