segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

A Cabana

Mais pelo efeito ‘marketing’ (“um dos maiores fenómenos de vendas nos EUA”, duas edições de Outubro de2009) entrei em “A Cabana” ("The Shack") de Wm Paul Young. A história, em si, é banal: um casal, Mackenzie Allen Phillips e Nan e os seus três filhos, Josh, Katerine e Melissa, fazem uns dias de férias num parque de floresta no Oregon. Incompreensível e misteriosamente Missy desaparece provocando a dor natural e o desespero do feliz casal, com efeitos mais marcantes no progenitor. Passados três anos e meio, por impulsão de um bilhete anónimo (Papá=Deus) misteriosamente colocado na caixa do correio, Mack atreve-se a voltar ao local do crime (A Cabana) onde, às tantas, se vê frente a frente com três personagens misteriosas: «uma robusta mulher afro-americana» (Elousine), «uma mulher pequena, nitidamente asiática» (Sarayu), «um homem que parecia ter 30 e poucos anos oriundo do Médio Oriente»(Jesus).
O livro desenvolve-se à volta dos sentimentos místico-religiosos de Mack, num discurso linear, sem ‘flashs back’, não suscitando qualquer ‘suspense’ (pese embora a trama inicial ter laivos de policial). Mais do que provocar dúvidas metafísicas em relação a questões de facto importantes como o sentimento religioso ou o mistério da existência o A. mais parece um pregador-missionário a dar receitas empacotadas em diálogos de inocente simplicidade. Sinceramente surpreende-me o seu impacto numa sociedade já com outras exigências intelectuais e literárias. Para mim foi o tipo de livro em que desejei chegar ao fim não pela curiosidade no enredo nem pela substância ideológica mas pela vontade de o largar. O ‘Sol’ em entrevista ao A. [16/1 0/09] fez-lhe uma pergunta interessante: “É um livro demasiado controverso para cristãos e demasiado católico para leigos?” Admitindo que, para alguns, deve ser isso Young assegura que «para a maioria a história não é sobre cristãos contra leigos, de forma nenhuma». Um Cristo fora de qualquer religião? Nessa mesma entrevista o A. por um lado afirma «sinto-me seguro de que esta história está assente na teologia ortodoxa» e, por outro, «sou um seguidor de Jesus, mas não sou uma pessoa religiosa». E, em entrevista à Rádio Renascença [21/10/09] diz que o livro, «não sendo só para crentes, pretende mostrar a verdadeira dimensão de Deus».
Pessoalmente não descortinei em “A Cabana” qualquer elegância literária ou construção de enredo que me permita classificá-lo como ‘marcante’. Mas estou mesmo a ver que vai dar guião para filme.

sábado, 26 de dezembro de 2009

Trassovivo

Frequento,com pouca asssiduidade, o atelier Trassovivo, do meu amigo Jorge Aragão, onde a Margarida dá largas à sua criatividade artística. É um grupo de amadores muito simpáticos e de muito valor já publicamente comprovado. Instado, de vez em quando, a tentar a minha inexistente arte pictórica já lhes disse que, se desenhasse um burro, para alguém identificar a figura teria que ver escrito por bem perto “isto é um burro”. “Já que não desenha escreva” sentenciam. Respondo não ao desafio mas à amabilidade com este

Cantinho dos Artistas


Universo sedutor simbólico
Pensar o todo pintar a parte
É arte

Espaço dimensão sem medição
Também de atelier de abrigo
Amigo

Local de liberdade criativa
Convite à reflexão imaginar
Sonhar

Onde a regra é libertar a fantasia,
Dar um gosto à vida pertencer
Conviver

Maravilha de criar em tela rasa
Dizer sem palavras emoção
Visão

Substâncias de produção
Acrílico óleo aguarela
A tela

Criações imaginadas
Cânone a sinceridade
Liberdade

Abstratos fingidos reais
Concepção em movimento
Sentimento

Chapéus feiras femininos
Cores que dão vida à vida
Margarida

Formas que a mente pariu
A paisagem o nu o lascivo
Trassovivo

Artistas a voar bem alto
Porque será que aqui estão
Aragão.

A questão ibérica

Uma recente entrada no blog “Aliás” sobre uma recente sondagem do jornal “El País” segundo a qual 40% dos portugueses aceitariam a união com Espanha suscitou-me este comentário:
A questão ibérica emerge historicamente de tempos a tempos.
Mais recentemente o paladino da união tem sido o "El País".Para além do que, na minha geração, nos ensinaram na Escola das nossas relações históricas com os nossos vizinhos, é útil racionalizarmos a questão. Pode o "El País" empertigar-se com os resultados da sondagem (não sei se os publicaria se menos favoráveis) mas a verdade é que ainda restam 60% de portugueses que teriam uma palavra a dizer. Aliás ponho reservas à aplicação da lei das maiorias em questões tão sensíveis como esta. Caso 51% dos portugueses fossem a favor da pena de morte esta deveria ser aplicada? Depois há a questão liminar do regime: Monarquia ou República? E se se caminhar para uma Europa das Nações que sentido faz unir o que está desunido há quase um milénio? E como reagiriam as regiões que em Espanha lutam (algumas ferozmente) pela independência? Quer-me parecer que, afinal, a classe mais interessada na união é a do capital ("et pour cause"!) mais alguns intelectuais que, no fundo, se envergonham de ser portugueses. Evocas, e muito bem, a cultura como factor essencial de identidade e independência nacionais. E cultura não é só livros, é sentenças sentidas do povo. Como apagar da memória colectiva o ditado "de Espanha nem bom vento nem bom casamento"? Para mim a conhecida frase de Lucáks "não há filosofias inocentes" assenta como luva a estas notícias: algo se pretende com elas. É o que se chama "gato escondido com rabo de fora". Tenho andado muito por terras de Espanha, admiro o seu passado, a sua cultura (identifico-me bem mais com o Unamuno do que com o Ortega y Gasset), e as suas gentes e tenho sérias dúvidas de que desejem a união.

Querela

Querela
Sobre o recente livro de Saramago, “Caim”, tem-se dito tudo e muito mais. Suspendi a minha opinião até ler o livro, como li os anteriores. Nas análises, nos frente-a-frente, nas entrevistas, debates, diálogos e blogs encontro alguns amores, muitos ódios e poucas imparcialidades. É vasta a legião dos ofendidos, quanto a mim despropositada porque, ou a fé é sólida e não é quemquer que a ofende ou é interesseira e receia concorrência. Parece-me vã a interpretação da Bíblia, se literal se simbólica ou metafórica. As duas coexistem e são legítimas: que Deus tenha criado o mundo em seis dias é, como quem diz, uma maneira de dizer, mas seria trágico não levar à letra o mandamento “não matarás” ou humanamente impossível não violar o outro que diz “não fornicarás” [Êxodo,20 – 13 e 14]. Nunca houve muita sintonia entre as duas dimensãoes da natureza humana, a Razão e a Fé e a verdade é que a expressão desta não facilita a aproximação da Razão : ouço proclamar (não sei com que convicção) no credo das missas :“Deus de Deus, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, consubstancial ao pai, por ele gerado e não criado…”. Convenhamos que é demasiado subtil e que bem poderia ser simplificado!
Ora Saramago, na minha leitura atenta, racionalizando não nega a legitimidade da fé dos que a têm (um doutrinador da Igreja, creio que Tertuliano, justificava-se sabiamente: “creio porque é absurdo”).
É abuso racionalizar episódios que, preto no branco, vêm descritos na Bíblia? Para a interpretação crente lá estão os exegetas (que estão longe da unanimidade). Para uma mundivisão agnóstica lá está a última frase, para mim a chave para a compreensão do texto: “A história acabou, não haverá mais nada que contar”. E a história é a escatologia de Saramago, simbolizada na pasagem de Caim por este “vale de lágrimas”, cruel e sem sentido porque regida pela lei do crime e castigo sem qualquer vislumbre de redenção.

Aniversário

[1.11.09]
Para que serve um aniversário? Poderia ser para celebrar os que faltam mas, na impossibilidade de os calcular,não é despropositado festejar os que já foram. Assim é, e pode-se fazê-lo de muitas maneiras. Uma delas, e não pouco comum, é deixar o habitat costumeiro e sair, de preferência com destino, que o risco da aventura é inversamente proporcional aos que se fazem. Este ano foi Lagos, mas através de itinerário diverso, percorrendo o Alentejo na plenitude do seu Outono soalheiro e variegado. Assim se pôde rever Beja e, das ameias do velho castelo, contemplar a vastidão que nos apouca. Seguir para Mértola, a de beleza e de história cativantes e, breve, chegar a Alcoutim, tão pequena quanto asseada e bonitinha como a carochinha. No ti’Afonso a delícia do guloso cozido de grão e doces regionais. Até Guerreiros do Rio é, como diriam os clássicos e porque em zona de caçadores, um tiro de uma dúzia de quilómetros, roçando o Guadiana e dez minutos de quietude (quase) religiosa. Guerreiros não tem nada para além do Hotel e do pequeno Museu mas tem tudo para quem descobrir, como fez a Margarida, a casa do senhor Carlos Escobar, um dos agora frequentes foragidos da agitação urbana e refugiados nos remansos da quietude rústica. Pequena habitação térrea com presença intensa do azul a ilustrar a paixão pelo belenenses (o Fred vai exultar de vaidade). É homem que tenho de conhecer. Encontro-o no café/taberna ao lado divagando (vulgaridades aliciantes, digo eu que não ouvi) com o pedreiro que faz um qualquer arranjo. Se me permite que fotografe e copie o poema que, em azulejo cuidado, adorna a parede exterior da habitação. «Pois não? Com gosto»:

“São três ruas a subir
São as mesmas p’ra descer
É monte de pouca gente
Força viva de viver.

Tem o nome de Guerreiros
Tem o rio abraçadinho
Tem peixe, paz e amor
E, seja lá p’lo que for
Vejo nele só carinho.

A sua gente é dos campos
Mas o rio também dá pão
Água doce, água salgada
A curtir a pele queimada
E a adoçar o coração.

Tem a norte as laranjeiras
E tem o álamo ao sul
Olhar, ver terras de Espanha
E quem chega nunca estranha
Ter mais sol ter mais azul”.

A modéstia não o instiga, mas vou à internet e leio: «Carlos Escobar “poeta, autor, jornalista, produtor, apresentador radiofónico”». Obrigado Carlos e até sempre.
Vila Real é mesmo a um passo, bordejando o agora calmo Guadiana, mas o apetecido arroz de lingueirão não é cozinhado que se sirva em dia de aniversário. Do mal o menos: atravessa-se aligeirado a via do infante até Lagos onde há tempo para proceder à desforra.……

Ponte no Jamor

Não há como uma pequena dor de cabeça para impulsionar-nos a alterar o ritmo próprio das rotinas facilitadoras mas redutoras da vida. Muito sem saber porquê fui ter ao vale do Jamor, bem perto de casa mas [quase] desconhecido por causa dessas limitadoras rotinas. Agradável surpresa: a mata cerrada circundando o Estádio e zonas de jardinagem e passeio bem cuidadas, ladeando a ribeira que vai limpa e límpida. Tudo bem moderno e convidativo. Atravesso uma pequena ponte com a indicação "Ponte Frei Rodrigo de Deus"(1547-1622). Por baixo uma lápide inscrita em tosca pedra da época
ASIDADEMAND/OVFAZERESTA/PONTEEASMAISOBRASACUSTADO/REALDO POVO/NOANODE1608.
Sempre admirei a mistura do antigo com o moderno.
O resto da curiosidade saciou-ma o google.
Este Frei Rodrigo de Deus foi «um dos membros mais ilustres e queridos dos franciscanos arrábidos, o ramo dessa numerosa família religiosa em que Frei Rodrigo de Deus professou aos 21 anos». Escreveu o tratado "Motivos Espirituais" (1611), referido e elogiado por 'duas das mais significativas figuras literárias portuguesas de finais do séc. XVI e inícios do séc. XVII – Frei Agostinho da Cruz e D. Manuel de Portugal'. Sobre a lápide um texto da Câmara Municipal de Oeiras:
«Quatrocentos anos sempre são quatrocentos anos, data assinalável, e para comemorar quatro séculos passados sobre a construção da Ponte Filipina sobre o Rio Jamor, a Junta de Freguesia da Cruz Quebrada-Dafundo promoveu, no passado dia 11 de Junho, uma cerimónia evocativa.Duas charretes transportaram os convidados de honra no percurso entre o Aquário Vasco da Gama e a ponte, onde foi depois descerrada a placa toponímica com o nome ‘Ponte Frei Rodrigo de Deus’. Na oportunidade foi ainda entregue, ao presidente da Câmara, um foral comemorativo, por um figurante trajado à época, encenando-se uma pequena recriação histórica.O presidente da Autarquia, Isaltino Morais, assinalou, no local, que “para a Câmara Municipal não são só as grandes obras que têm significado – estamos a fazer um grande esforço no sentido de conseguir recuperar todas as pontes do concelho. E são dezenas, na medida das muitas linhas de água que atravessam o concelho”.Recorda-se que a travessia sobre o Rio Jamor que ainda permite a ligação entre a Estrada Marginal e a localidade da Cruz Quebrada, foi construída, em 1608, graças à tenacidade e abnegação de um frade franciscano, Frei Rodrigo de Deus, que agora dá nome à ponte».

E assim pude constatar: o melhor de um dia perdido é um bom achado.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Um dia depois da minha entrada anterior li no ‘Bicho Carpinteiro’, blog do meu antigo colega de Faculdade Medeiros Ferreira:
«Guerra justa ou necessária?
Obama não interesa ao resto do mundo pelo facto de defender «os interesses dos USA», mas por defender esses interesses de uma certa maneira mais conforme com os valores da civilização internacional. O discurso de Oslo tem a marca do circunstancial, e foi uma oportunidade perdida para falar como pessoa. Quanto às guerras, elas , no máximo, são necessárias. O conceito de guerra justa provem das religiões, e hoje sabemos o que isso significa e quem recorre a ele com outras palavras. No Direito Internacional a guerra está justificada pela legítima defesa, pela resposta a invasão ou a agressão, e outros estados de necessidade. Como as operações militares a decorrer no Afeganistão desde 2001. Sim, há oito anos».
Não foi certamente por aprendermos na mesma Escola. A verdade é que, frequentemente, concordo com as suas breves e sensatas análises.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

guerra justa

Hoje Barak Obama, no discurso de agradecimento pelo prémio Nobel da paz defendeu (ironia das ironias) a guerra justa. O conceito de ‘guerra justa’ tem raízes medievais e foi defendida, juntamente com a teoria do ‘tiranicídio’ (é legítimo liquidar o ditador) pela igreja de Roma. É, a meu ver, uma teoria perigosa e completamente injustificável e, no limite, pode levar-nos à conclusão de que toda a guerra é justificável, portanto legítima. É que, nesta lógica, pode ser justa a guerra da Alcaida (para os que a fazem é-o de tal forma que até lhe chamam ‘santa’). Porque a justiça é, como a verdade, um conceito subjectivo.
Não me custaria aceitar o conceito de ‘defesa justa’, desde que ele não implicasse a teoria de que a melhor defesa é o ataque que, bem vistas as coisas, tem sido o argumento que os americanos têm dado para todas as intervenções em países cujos regimes não lhes convêm, sejam eles próximos (Chile do Allende)ou afastados (Iraque).

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Um aniversário

A menina é pequenina.

Faz anos, que linda graça!
A graça de uma bonina.

Celebremos este dia
Com transbordante alegria;
Faz anos – que muitos faça!

Fazer anos, lindo fado,
Ter mais uma primavera;
- Quem nos dera ! quem me dera ,
Contigo sempre a meu lado.

«Ainda se os desfizesse»
Disse o João que era de Deus.
(Não se fazem tais apelos !)
Mas não se referia aos teus
Porque o que é bom é fazê-los.

Um antes, outro depois,
Na verdade são dois «cinco»
(Aritmética inútil).
Deus sabe que eu não minto
E não digo coisa fútil :
Queremos ser um em dois.

«Que os repitas muitas vezes»
Qualquer um sabe dizer
«Por cada ano mil flores»
É que é dizer de poeta,
Digo-to eu sem o ser:
Muitos anos p'ra viver
No jardim dos teus amores.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Uma fita para o Fred

Querias ser reformado
Quando eras pequenino;
Quem diria ser teu fado
Traçar o teu próprio destino.

Teu lema é não parar
A missão ir mais além;
Não há limite ao sonhar
Quando se quer ser Alguém.

Em milhares de parabéns
E de sucessos também
Estes são especiais :
São do Francisco e da Mãe.

Algum esforço, muita vontade,
Chegaste ao fim. Ai que saudade!
Primeira etapa, outras virão,
O que te espera é uma missão.
Serão estratégias muito pensadas,
Visões, missões determinadas,
Serão objectivos, serão Clientes,
É a mudança, são os pendentes.
Recrutamentos e admissões,
Telefonemas, reuniões...
Serão análises, avaliações
De desempenhos, com notações.
Mais eficácia, mais Qualidade,
Na liderança, humanidade.
São os contratos, é o Direito,
Margens de erro, caminho esteito.
Despedimentos? – Desilusão
Que faz doer o coração.
Mais resultados – presta atenção :
Tudo se faz com Formação.
Mas tudo isto não tem segredo
Nunca dirás ai, ai, que medo.
Esta a etapa, esta a missão,
Isto é trabalho – isto é Gestão.
Com muita força, muito querer
Os desafios são para vencer.
Fazer com brio, fazer com gana,
Por trás de ti tens a Joana.
Com pertinácia (e muito agrado!)
Hás-de chegar a reformado.
Máxima honra, santa velhice;
Então dirás “ai que chatice”.

O meu desejo, prece também:
Que Deus te ajude a ti e

Ámen.
Uma fita para a Joana

A Joana é assim...
Um dia sonhou:
Hei-de ser alguém
que aos outros vai fazer bem!
A Joana é decidida,
É das que sabe o que quer;
Foi cursar Humanidades,
Não para um lugar qualquer,
Para a Católica, que é
a melhor das Universidades.
Estudar?...foi um prazer;
Fez o curso a brincar
Sem qualquer ano perder;
Foi «chegar, ver e vencer»
(E até deu para namorar!).

Agora chegou ao fim.
Chegar ao fim é começar
Com redobrada energia;
Dar aos Pais, ao Fred,
A todos
Os que sempre,
(Em especial nesta hora)
Estão consigo
Aquela mesma alegria
Que lhes deu até agora.

Agora que «é alguém»
Nobres tarefas a esperam
Mas também muita ilusão :
Ser bálsamo para tanta dor,
Ser Palavra, ser Amor,
Esperança, dádiva, flor,
Alma grande como um monte,
Ser para todos uma fonte
Donde jorre tanto alento
Que apague sofrimento.
Uma luz na escuridão.
Fazer da vida um momento,
Fazer da vida Missão!
Natal


Natal é esperança, Natal é nascimento;
É música no ar em sons ritmados,
É sentir perto de nós anjos alados,
O céu descer à terra um momento.

As estrelas brilham mais no firmamento,
Pensamentos também mais iluminados,
Ódios antigos até são olvidados,
Do amor e do perdão é o advento.

E se deixasse de ser só naquele dia?
E se essa ventura noutros dias fosse igual?
E se sempre houvesse paz, amor e harmonia?

Brilhará nos corações nobre ideal,
Faremos dos outros a nossa alegria
Sempre que dentro de nós houver Natal.
Obrigada, Mãe

Mãe, é dia de dizermos obrigada,

Ah! quanto de ti há em nós, quanto!
Sempre pronta a estender-nos o teu manto,
A desejar dar-nos tudo sem querer nada.

Ó bálsamo que cura, ó guia iluminada,
Quem desvendara o porquê do teu encanto,
Quem entendera o teu poder, que é tanto,
Mulher que, porque Mãe, és adorada.

Referência que nos traz felicidade,
Perdão que nos acolhe como ninguém,
Complacência que nos olha com bondade.

És luz na escuridão, prece também,
Para uns doce presença para outros saudade,
Felizes são os que podem chamar MÃE.
Mimos de Mãe



Minha Mãe, minha Mãe, ai que saudade
De quando repousava, displicente,
No teu regaço, berço, que de tão quente
Só tinha por limite a eternidade.


Porque passou tão depressa a mocidade?
Porque hei-de ser o teu menino eternamente?
De lembranças viverei alegremente,
Porque o Amor de Mãe não tem idade.


Teu sorriso, triste, sempre relembrado;
Tua tristeza, alegre, sê-lo-à também;
Teu carinho, doce, é por mim sonhado.


Tu, a estender-me o teu regaço do Além;
Eu, aqui, sentir-me-ei sempre embalado
Enquanto não me cansar de dizer MÃE.
Ser brunhosense...

Brunhoso, terna saudade
Para quem nasceu de ti;
Velhinho sem ter idade,
Sempre novo te senti.

Vejo do Alto da Cruz
Teu casario espraiado;
Em cada alma uma luz,
Em cada casa seu fado.

Debruçada sobre o povo,
Em encosta soalheira,
Bairro velho, bairro novo,
Ó Quinta da Carvalheira.

Da colina da Malhada
Até ao fim do Fundão
És uma terra sagrada,
Lavrada p’lo coração.

Ajuntadouro de gente,
Discussões e reboliço;
Todo o mundo está contente,
As cenas são no Toutiço.

Cantarinha na cabeça,
Em tempos que já lá vão,
Eu via as moças subirem
A ladeira do Balcão.

Já foste Rua dos Paus,
Hoje és Rua dos Moredos;
Não me escondas, não são maus,
Da minha infância os segredos.

Trás da Rua da Canelha
Mora rua verdadeira;
A árvore morreu de velha,
A Rua é da Oliveira.

Em cada filho um amigo,
- A tantos causas inveja...
Se quiseres casar comigo
Prometo levar-te à Igreja.

Teus braços em cruz ‘stendeste,
Quiseste fazer mistério,
Um braço da cruz puseste
No Bairro do Cemitério.

De ti estou orgulhoso
A tua alma é a minha; ,
Hei-de cantar-te, Brunhoso,
Da Faceira à Fontaínha.

O teu ar é alimento,
O teu desenho uma cruz,
Teu destino é sofrimento
A fazer lembrar Jesus.
Os sinos

Todas as terras têm os seus símbolos, ícones e monumentos a perpetuarem memórias e a servirem de referência e até de vanglória aos seus patrícios. Os sinos de Brunhoso fazem parte da sua vaidade merecida e das nossas recordações. Quantas lembranças evocaram e evocam nos que, distantes e saudosos, os ouvimos como se de virtualidade real se tratrasse!
Os sinos são a razão e a emoção, o significante e o significado, o convite e a obrigação. São a informação. Ninguém confunde a chamada para o terço no mês do rosário com a chamada para a Missa domingueira. São indicações diferentes. Como todos distinguem o toque da 1ª chamada do toque «à pressa».
Até actos e hábitos sociais são pautados pelo toque normativo do sino. Que quando vespertino «às avè-marias» é ordem para a garotada regressar a casa, enquanto que o camponês apanhado no regresso do dia de trabalho se descobre e murmura para si, mesmo se acompanhado, a sua oração sagrada.
Deus nos acuda se, a qualquer hora, ouvirmos os sinos com inusitada força e rapidez: cântaros, baldes, regadores, todo o vasilhame disponível para atacar o incêndio seja ele onde for.
Sinos é alegria. É a festa do santo, é o casamento, o baptizado, o enterro do anjinho, é a procissão («tocam os sinos na torre da Igreja / há rosmaninho e alecrim no chão/ na nossa aldeia, que Deus a proteja/ vai passando a procissão»-António Lopes Ribeiro). É, acima de todos, o domingo de Páscoa com direito a repicarem ininterruptamente, com acesso indiscriminado, por vezes disputado.
Sinos, pináculos e envolvente enfeitados espontâneamente com manhuços de flores campestres da época, de cores variegadas, adornam os sons alegres e festivos, mesmo quando a lenga-lenga é pouco melódica, porque produzida por aprendizes curiosos e novatos imberbes como que a quererem assegurar aos grandes que não há risco de continuidade. É dia em que até se podem revirar, mas isso não é para todos! Como resultado obtém-se um gemido lânguido e queixoso. E fazer o sino fazer o pino é um sucesso.
Mas sinos é também tristeza. Doloroso, doloroso, é o toque a finados. Melopeia vagarosa e compassada em ritmo binário, primeiro a badalada de um sino, logo a do outro, concluídas com dois uníssonos de acústica dissonante que toca o coração e aguça a curiosidade :
«Sinos a defuntos, ai, quem morreria?
Olha foi o pobre do ti’ Zé-senhor;
Velho, tão velhinho nenhum outro havia,
P’ra fazer 100 anos lhe faltava um dia
Há 94 era já pastor»
[Guerra Junqueiro].
Como triste é o último toque do dia – já lá pela noite adentro – lento e lúgubre como convém ao encomendar das almas… dlão…dlão...dlão...
-Ó almas que estais em pena
-Ó almas que em pena estais
-Lá vos mandamos esta esmola
-P’ra que das penas saiais.
Pai-nosso-ave-maria.
Uma criança concluiria a sua redacção com singeleza poética «os sinos moram no campanário». A. Herculano escreveu com nostalgia romântica «os sinos, já não há quem os toque». Por mim direi apenas com saudade agradecida : haver haverá, mas aquela perícia de refinado artista que era a do sr. Zé Luís, sacristão, do meu tempo, não ma esqueçam, por favor.
O gadanheiro

No Verão os dias são longos e o sol é o relógio que marca as horas. Só funciona entre o nascer e o pôr-se. Trabalho duro. Os lameiros são na Azênia, a aldeia está longe e é preciso estar lá quando o relógio que é o sol arranca. De véspera, gadanha bem picadinha em ferro espetado no chão e martelo próprios. Árduo é o trabalho. Até ao sol a pino aguenta-se, perduram restos da frescura matinal, mas vem aí a tarde, a malvada que nunca mais acaba. E os gestos repetem-se à exaustão num vai-vem rasteiro em semi-círculo, p’rá esquerda a cortar, p’rá direita a ganhar força, e a erva que será feno, linda de verde, a cair num amontoado longitudinal em lombas que são ondas. Trabalho duro mesmo. Meio-dia, o jantar ajuda: o menino levou-o nas alforjas da burrinha e as sopas, abundantes, de grão-de-bico e bacalhau, chizadas, não arrefeceram.Um vinhito fresco em cabaça avinhada é o melhor complemento. Debaixo do freixo frondoso a sesta – retemperadora? Ouxalá que fosse! A tarde é áspera, indesejada, o sol aperta a sério – 40, 45º, bom termómetro é o corpo – provocando lágrimas de suor que doem. Na cabeça, o lenço vermelho amacia o incómodo húmido do feltro do chapéu e, espassadamente, limpa a cara transpirada. Trabalho duro, digo-vos. A tarde vai ainda a meio, os dias são longos e o ritmo da gadanha cumpre o ritual: zás...zás; zás...zás, com afiações frequentes em aguçadoura de gadanha mergulhada na água contida no extremo de um corno e presa à cinta do gadanheiro. Cuidado com ela, não vá tocar em pedra e melar-se... Há vinho, é certo, fraco e abundante mas, que diabo, o corpo pede sempre mais e a sede não cede. A fontela é próxima das poças onde bebe o gado depois de amariçar. A necessidade pede sofreguidão. Engano. Mesmo assim é um lenitivo: para a sede e para uns escassos minutos de repouso.Vamos lá aguentar mais um cibinho...
No final do dia são 10 horas bem contadas, de gadanha bem segura por mãos calejadas, de movimentos ritmados e repetidos, de corpo estafado a pedir descanso. Descanso para quê? Para no outro dia repetir o ritual. Era duro de verdade o trabalho de gadanheiro. E se a Morte significa o descanso eterno mal lhe fica ter escolhido como símbolo a gadanha.

A vaca

A vaca é um animal doméstico porque vive com o homem. A vaca é muito útil porque nos dá muitas coisas e também serve para muitas utilidades. A vaca por exemplo dá-nos a sua carne que serve para a nossa alimentação, o seu leite para fazer soro, colhada e queijos, a sua pele que serve para curtir e depois fazer sapatos de cabedal, os seus pelos do rabo para fazer pincéis, os seus ossos que dizem que servem para fazer pentes, as suas hastes (na redacção não se pode escrever cornos) que servem para fazer apitos e para os pastores meterem lá a chicha e os seus vitelinhos que servem para vender. As vacas também servem para os agricultores fazerem os seus trabalhos do campo porque são muito valentes e os donos têm muita proa com as suas. Duas vacas são uma junta e o sr. Miguel diz que a dele é a melhor mas cada um diz que é a sua. As vacas também nos dão as suas bostas que são misturadas com a palha para fazerem o esterco que serve para adubar as terras, mas não se devem deixar cair nas parvas, devem-se aparar numa cortiça corcha e juntar-se num montão. E as bostas também servem para chamar bosta a quem não gostamos.
Às vacas pertence-lhe serem amarelas mas há cá na terra duas ou três famílias que cultivam uma vaca às cores só para dar leite e por isso chamam-se leiteiras, mas essas não servem para trabalhar porque são mochas.
A professora diz que vaca é um substantivo comum feminino do singular e se ela o diz é porque é mesmo mas para quem tem muitas como os ricos é um substantivo colectivo. E o Silvestre lá voltou a apanhar as três reguadas do costume por escrever baca, mas ele já devia saber que no ditado não se escreve como se diz.
O marido da vaca é o touro e só não é o boi porque este já não faz nada.
Eu neste Verão ganhei-lhe à bilharda ao menino Francequinho que vem do Porto a passar cá as férias com os avós e traz calções. Mas ele não gostou nada e agora diz que não quer jogar mais comigo porque eu tenho muita vaca, o que é mentira porque o meu pai só tem uma junta e uma vitelinha para criar.Deixá-lo, jogo com o Artúrio que me ganha sempre mas que não sei porquê só gosta de jogar comigo.
As vacas também são úteis aos governantes que quando não querem dar dinheiro ao povo dizem que é por estarmos no tempo das vacas magras, mas também nunca chega o tempo das vacas gordas. Também há quem se sirva das vacas para ofender mas elas não têm culpa. Outro dia ouvi a srª Aurora a ralhar com a srª Olinda e a chamar-lhe vaca mas esta respondeu-lhe vaca será você e assim ficou tudo na mesma. E de um de cá da terra, mas eu não digo quem, dizem que é má rês. As vacas às vezes também servem para fazer rir com anedotas como aquela do bezerro a dizer à vitelinha querida queres ser a minha vaca?
Na nossa terra também há cá uns animaizinhos que se chamam vacas louras, mas não são vacas e botam uma peçonha que faz coxo. Não lhes tocar com o dedo. Eu espeto-lhes um pauzinho afiado na ponta e pronto já está.
Eu gosto muito de vacas e assim acabo a redacção porque já disse para o que elas servem e a professora diz que não se deve estar a voltar sempre à vaca fria.
O burro

O burro é um animal doméstico porque vive com o homem. O burro dá-nos o estrume que serve para adubar as hortas, dá-nos os ossos que servem para fazer pentes e dá-nos a força que serve para acarretar tudo o que cá se cultiva : centeio, cevada, ferranha, milho, batatas e nabiças e até é capaz de trazer da ladeira sacos de amêndoa e de azeitona que vai logo para as tulhas do lagar dos Benignos. O burro também serve para levar a gente para a feira na Vila, mas aí vai todo enfeitado com albarda nova com tapete e alforjas bordadas e cabresto vistoso. Até parece que vai para a festa. Mas não é boa educação a mulher ir escarranchada ou ir à frente do homem, podem dizer que vai roubada. Alguns ricos têm cavalo mas os que vão de burro também vão a cavalo. Dá na mesma e os burros até são mais mansos. Por isso os sentenças dizem mais quero burro que me leve do que cavalo que me derrube. Os alfaiates dos burros são os albardeiros que na nossa terra são muito importantes porque há cá muitos burros. A professora ensinou-nos que burro é um substantivo comum e regular pois o feminino é burra ao contrário do feminino de boi que não é boia e de carneiro que não é carneira e de cavalo que não é cavala e de galo que não é gala e de cão que não é cã e de chibo que não é chiba. Os burros são animais educados, um dia ouvi o meu pai dizer para o tio João quando um burro zurna o outro amoucha as orelhas, isto para o meu tio não o interromper, mas são amigos.

Agora quem já não gosta tanto de burros é o Silvestre, desde que por causa do ditado apanhou três reguadas em cada mão, coitado. Também quem é que o mandou escrever burra com ó. Mesmo assim no recreio ainda brincamos aos burros. Uma é assim, diz depressa aqui jaz o rei e a outra é os da 4ª classe a perguntarem qual é a 1ª pessoa do singular do presente do indicativo do verbo zurnar. Alguns caem nela. Os burros quando são novos não são burros, agora já se sabe que burro velho não toma andadura.Também nessa idade não sei para que é que a quereria. Os ciganos sabem a idade dos burros pelos dentes e se não se enganam enganam, mas os aldeanos já estão de pé atrás com eles, mas isso é só para comprar e vender porque se for burro dado não se lhe olha o dente. Há uma data de dias especiais, da Mãe, do Pai, dos namorados, da feira, da festa, o dia de são nunca à tarde que é quando então o meu pai diz que me vai dar a burrica e assim mas dos burros ainda há mais, há um mês que é o que aí vem. Nesse mês juntam-se nas eiras do Prado muitos burros e burras a brincar mas as mães não querem que os vamos ver porque dizem que fazem coisas feias mas nós vamos às escondidas. Os burros não são burros as portas e os socos é que sim. Porque ao contrário do nome o burro é inteligente, a nossa senhora catequista ensinou-nos que está na Bíblia que uma burra até falou, até nos disse o nome do dono mas eu não me lembro, desculpe, e outro burro pensou tanto que até morreu a pensar. Os burros são educados e não gritam, por isso é que as suas vozes não chegam ao céu que está muito longe. E o burro também serve para dar conselhos e fazer recomendações como esta tu não sejas burro ou esta pensavas que era só chegar à burra e tirar-lhe um figo? O burro é um animal valente que se aguenta bem, pois só com três ao burro e o burro no chão. Por causa de um burro eu um dia fiquei todo embufado quando me disseram que o meu irmão tinha uma burra e eu também queria. Por fim ainda se riram de mim porque a burra era na mão. Há dias quando a minha avó mudava os lençóis espreitei vinte mil reis no colchão mas ela logo me disse que se fosse rica os metia na burra, adonde não sei. Os burros em pequeninos são muito lindos mas quando o Artúrio me chamou Chico burrico eu enraivei-me e escondi-lhe o regrão. Há pessoas que se aproveitam dos burros para serem mal-criadas. Um dia a Alice disse à Celeste foi a burra da tua tia referindo-se à tia e não à burra. Agora espero que a professora não me chame cabeça de burro por já ter escrito 47 vezes a palavra burro, fora esta e a que vem a seguir. Vai ser bonito, vai. Porí não me leva a exame mas a minha mãe já lhe prometeu um queijo de ovelha curado. Por tudo isto eu gosto muito do burro. Fim.
O alho

Sou um seduzido pelas palavras. Acredito que, como as pessoas, têm a sua personalidade : há-as honestas, sinceras e exuberantes como as há mentirosas e até inúteis. Já na Escola não percebia por que é que a palavra «aguda» é grave, o «monossílabo» é polissílabo ou porque havendo o pretérito «perfeito» qual o interesse do «mais-que-perfeito». Como a Professora também não sabia envaideci-me com a minha ignorância. Desta minha sedução faz parte a palavra «alho». É tão simples (4 letras em 2 sílabas) como o que representa (só tem cabeça e dentes). E, no entanto, que riqueza de significados! Ignorante em linguística recorro-me do Dicionário (da Academia) :“planta hortense da família das liliáceas, de folhas lineares, flores brancas e cujo bolbo é composto de pequenos gomos, tem cheiro e sabor acentuados e se utiliza em culinária como condimento”, acrescentado algumas utilizações metafóricas.
Tudo bem, mas onde está expressa essa riqueza que lhe reclamo?
Quem a deve ter compreendido é Brunhoso ao conceder-lhe, no plural, foro de topónimo (por detrás do Cemitério, creio, não sei porquê visto que o seu cultivo era feito nas hortas). A utilização culinária do alho, em cru, cozido, estrugido, ou até assado, merecia honras pelo menos semelhantes às que se dão ao tomate («no tempo da tomateira não há ruim cozinheira»). Um assado de carne fica bem mais saboroso quando adormecida em vinha (não sei porque não em vinho) d’alhos. Há várias receitas de alheiras, com mais ou menos capoeira ou caça, mas já imaginaram uma alheira sem alho? Seria como um cotovelo sem co. Até as folhas verdes da planta (porretas) acrescentam a um prato de favas um sabor especial. Repare-se como é original e personalizada a receita da aplicação deste condimento aditivo : não é medido, como outros, em gramas, decilitros, colheres de sopa ou q.b. , mas em dentes.
Mas não é só em contexto culinário que o alho afirma o seu valor. Quando, por exemplo, alguém é considerado guicho, diz-se que é fino como um alho. Inversamente, se for obtuso e esquecido é um cabeça de alho chocho. Em contexto social até pode assumir interessante e útil expressão moderadora : se uma contenda algo azeda tiver um final apesar de tudo menos mau, o relator pode concluir sem que lhe mandem dobrar a língua : por fim acabaram mandando-se um ao outro para o alho... E ainda se aplica para recomendar clareza de pensamento e objectividade no que se diz, pois é bom não confundir alhos com bugalhos. Palavra pequena mas sempre de presença marcante : pode-se comer com algum exagero uma boa pratada de chicha ou de bacalhau mas fica-se a arrotar a alho. E ninguém se admire se, depois de apetitosa açorda de mariscos, a sua boca ficar a cheirar a alho. O que pode ser socialmente criticável mas é, dizem os antigos, o melhor (depois dos caldos de cobra) para atenuar esse maldito reumático. E como é que a minha mãe expulsava as lombrigas parasitas do meu inocente ventre? Com saborosas sopinhas de centeio,bem regadas com azeite cru e salpicadas com abundante alho bem picadinho por cima.
Embora não seja do meu particular agrado devo, como escrivão do alho que sou, fazer referência, ligeira como convém, a duas espécies espúrias:
1ª- não sei se por influência da emigração ou quê começou, em tempos, a aparecer o alho francês, que do verdadeiro alho só tem o nome.
2ª- antes de aparecerem os modernaços martelinhos, como é que as pessoas se saudavam cortêsmente nos festejos tripeiros do S.João? Com o alho porro, mas este nem para culinária serve e o adjectivo só no feminino é que tem alguma força.
Posto isto agora eu, ao escrever sermão que ninguém me encomendou, só não estarei a meter-me numa alhada porque, sendo este o forum com mais provedores por subscritor, beneficio de, até agora, não haver registo (não me perguntem porquê) do dito dos alhos. Mas se, entretanto, aparecer um intruso, não se resguarde de me arriar, nem que seja por, armando-me em sabichão na matéria, ainda o não ter convidado a provar os alhos da minha lavra. A ver vamos...
As parvas

Molhos tirados daquela pirâmide elegante que é a meda, vincelhos desatados, cereal (trigo, centeio, mais raro lentilhas) bem espalhadinho e acamado em círculo quase perfeito – é a parva. O espaço está reservado nas eiras, que as há públicas e privadas, emprestadas e não alugadas, de ano para ano. A parva ali está, pronta para submeter-se ao trilho, peça rasa e rasteira com fundo cravejado com ferrinhos bem cortantes e demolidores. Puxado por vacas, burros, menos vezes muares (mais ariscos e menos domáveis) em voltas lentas e monótonas, repetidas sem qualquer alteração de ritmo. Sobre o trilho pedra para o tornar mais pesado e triturador e o tocador que mantém as crias dentro do circuito obrigatório sem as deixa parar. São voltas e mais voltas à volta da parva até que o grão da espiga seja separado da palha e esta meio moída.Pelo dia adentro a canícula aperta, rapazes e bestas.Aqueles combatem o monótono da tarefa lançando sem grande convicção e, por vezes até com ironia, um desafio para o parceiro do lado com as mesmas angústias, uma cantilena também ela monótona e monocórdica :
-“Bou-me daqui, bou-me e num bolto aqui mais
-Dize-me lá, intão, ó Manel p’ra onde é que bais
-Uma rica prenda que tens e num ma dás
-Qual me darias qual me darás
-Darei-te a Alicinha que é uma mocinha capaz”,
seguindo-se a aceitação
(“essa é bem boa tomara-a eu cá p’ra mim”), ou, então, a rejeição da prenda quando a oferta é maldosa.
As bestas vingam-se da monotonia e da caloraça aliviando o ventre e obrigando o mandante a aparar o excremento na cortiça rasa. Voltas e mais voltas à volta da parva. Julho, Agosto, calor de inferno, sombra só a da meda, quase nula à hora do pico. Cereal moído, palha em cima grão em baixo, segue-se a limpa.
Ouxalá chegue depressa o vento, esse ventinho abençoado que separará a palha do grão, aliviará a canícula dos limpadores e refrescará as gentes da parva. É preciso aproveitá-lo! Com espalhadouras e bendas com cabo e dentes de madeira os limpadores, em gesto largo e elegante de bailarino, lançam a mistura ao ar – aí vai ela – e o vento amigo, bendito seja Deus, fará o resto. A parva é trabalho rural único : envolve a Família, adultos e garotos, é feito perto de casa, é breve e compensador. No fim, grão para as tulhas palha para os palheiros, é a colheita das merecidas vaidades.
(-Que tal a colheita deste ano, Sr.Francisco?
-Bacatela,
resposta com modéstia enganadora).
A parva é trabalho rural único: até há lugar para o acidente, que só não é tragédia pela pronta intervenção dos poucos adultos presentes; o menino, o Fernando, loirinho lindo, o pobrezinho, debaixo do trilho. Gritos de socorro, seguidos de alívio pela relativa suavidade das feridas. Não se ganhou para o susto.
A canícula é grande, mas naquele dia exagerou. As gentes da parva estão sedentas de água. Há-a límpida e fresquinha ali a dois passos na horta do Cimo do Povo do sr.Garai-Garai (perdõe-me Sr. José António, eu sei que não gostava). O pai pede ao rapaz para ir lá encher a cantarinha de barrro, mas este, remoído e contorcido por dentro mais pela rebeldia do que pela dificuldade resiste. Debalde: um «pschiu» seco e grave é mais que suficiente para o pedido passar a ordem indiscutível. Chega a cantarinha, primeiro o mais velho e, à primeira golada, água fora da boca.
-Tu num me fuste à fontela, garoto!
-Fui sim, pai, responde o garrano, que só não mentiu porque não lhe foi perguntado se na bilha tinha feito algum xi-xi.
Também não minto ao dizer-vos que quem ma contou me pediu para não a escrever no jornal. Perdõem-me por não ter respeitado o pedido.
A matança das minhas recordações

Que eu me lembre, naquele tempo em Brunhoso só eram conhecidas duas matanças : a dos inocentes, de há dois mil anos e a do porco, de agora. Daquela lembrava-se a malvadez de Herodes, esse facíonora degolador de crianças, cuja única culpa era terem nascido quando Jesus. A do porco era singular e única, digo-vos. Matavam-se cabritos e canhonos mas não era matança; matar capoeira (patos, pitas, perús e coelhos) era rotina. Até na festa de Santa Bárbara se matava uma ou mais vitelas e ninguém celebrava. Mas matar o porco é que era : dia marcado, reboliço em casa logo de manhãzinha, nervosismo e muita agitação nas mulheres, já que os homens, esses, primeiro, ainda vão acomodar as crias. Deixemos os antecedentes : já se sabe que o verdadeiro porco é criado, não mercado. Como se sabe que a criação é trabalho da dona (porque o porco não tem dono), que o faz com não excessiva atenção, é certo, enquanto leitão e larego (é só vê-lo crescer bem e engordar pouco) mas com esmero e cuidado (cabaças, nabos, bolotas e castanhas em abundância p’rá pia) quando for da ceva. Deixemos a decisão de não o capar a quem o quer berrão ou de não a capar a quem quer reprodução compensadora antes de ir ao sacrifício. Deixemos que vagueie com liberdade pelas ruas, que entre por currais e quintais muitas vezes não permitidos («côche, vai p’rá dona, que isto aqui não é teu»), que vá até às eiras na condição de vir pernoitar na loje. Deixêmo-lo, pois, em liberdade, a liberdade ilusória dos condenados. Agora aproxima-se o tempo de Natal, frio, frio a valer, que enrija a pele dos vivos e conserva as carnes frescas estendidas ou penduradas na despensa. Não há frio para o cevado que, anafado e lerdo mas sempre devorador, mal se move à volta da pia abundante, grunhindo ou roncando, insaciável, à espera de mais.
Deixemos, então, o antes e preparemo-nos para a matança, que será no curral, na curralada ou, até mais frequentemente, na rua, que o que é público é de todos. O ritual que vai iniciar-se pede preparação : antes de matar o bicho «mata-se o bicho» : bom carolo de trigo com linguiça e azeitonas, salpicão e presunto do pernil que ainda resta porque guardado para a ocasião, figos secos, aguardente, coisa leve porque um apetitoso prato de molejas não demorará a ser preparado pelas solícitas mulheres da cozinha. Que, coitadas, não param num vai-vem frenético mas descoordenado, topa-aqui, topa-ali, «fuge-me da frente, garoto», mais pelo receio de fracasso do que por exigência das tarefas.
Laçar o animal (corda no focinho) ainda no cortelho, tocá-lo calmamente para não o enervar até ao banco, deitá-lo, segurá-lo com a corda no pescoço, cruzar-lhe as patas trazeiras para, segurando uma, lhe retirar força da outra, exigem paciência, jeito, força e, sobretudo, acção coordenada. Três homens bem orientados chegam. (Não demorar muito as operações para não enervar matador e vítima). E, agora, é que vem a arte, a arte de espetar a faca (raros os que usam a navalha) não para matar de imediato mas para o sangrar bem sangrado, que as carnes querem-se limpas de sangue. A mulher apara e mexe sem parar o sangue que escorre aos gorgolhões ao ritmo do estertor do bicho, caindo em barrinhão com algum vinagre para não tralhar logo. E, por fim, a estocada final, o toque no coração, em golpe seguro e certeiro. E o porco «cuim-cuim» e eu aqui a arrepiar-me só de o escrever (mas livra-te de dizer «coitadinho», pode impedir a morte do animal). Mas, enfim, lá o consegui apelando à então para mim normalidade do acto que, depois, já com muita civilização em cima, viria a ouvir pela boca de sabichões que julgam saber tudo do que não sabem nada, ser uma crueldade, todavia praticada por homens pacatos e bons.
O que se segue é o chamusco : palha trilhada para cima, bem regulada para não lhe queimar o couro, facho de colmo a arder e bem firme nas mãos para controladamente chegar às partes menos expostas (orelhas, focinho, sovacos, unhas), água abundante, pequena cortiça a esfregar o chamuscado e navalhas bem afiadas a raspar os pelos que escaparam ao lume. Ali por perto, garotos extasiados acompanham, sorridentes e curiosos, o trabalho dos grandes. Já sabem que a sua glória será conseguir meter uma unha do porco no bolso de algum parceiro menos precavido e provocar a risada geral.
E o corpo teso e limpinho do animal ali está, pronto para o matador o abrir. São as tarefas do fazer : faz-se a barbada que traz o unto, faz-se o cu, com vossa licença, que é tarefa para os mais experientes e também deferência («faça favor, sr.Francisco»). Tripas para um cesto de vime, tapadas com toalha de linho verdadeiro, que as mulheres em breve irão para o ribeiro (não há falta na estação) fazer-lhes a limpeza completa. Terminaram os trabalhos, por hoje: sem tripas e sem miudezas o reco irá, em espeto próprio, para a despensa onde, em posição vertical, esperará até amanhã para ser desmanchado. Não terminou, porém, a matança, a não ser que esqueçamos o “jantar”, que inclui fumeiro bem curado do porco do ano passado e miudezas bem temperadas do deste, porque «o dia da matança do porco...é um bom pretexto para convívios e comilanças, que juntam à volta da mesa familiares, amigos e vizinhos, alguns vindos de longe para a festa» (“Festas e Comeres do Povo Português” -de Mª de Lourdes Modesto e Afonso Praça) ;a não ser que esqueçamos a acção de graças final («bendito, louvado e adorado seja o SSº
Sacramento do altar e a puríssima conceição da sempre Vigem Maria Senhora nossa, Deus que nos deu p’ra hoje que nos dê p’ra sempre e graça para o servir e a benção desta mesa, assim seja» ); a não ser que esqueçamos a suecada final onde, meu Deus, arrenúncias, carvalhadas,
arrotos e vinho em abundância completarão a festa que era o dia da matança.
E agora, sim, que a festa acabou, viva a festa, porque estou como o outro que diz «porco morto cevada ao rabo».

«A Voz do tempo»


Interroguei a "Voz do Tempo" sobre mim:

FC - Como foi a minha vida até vir parar á EMPB?
VT – Nasceste na aldeia de Brunhoso, Mogadouro, “ao toro de uma couve” despachava-te a tua mãe para calar a tua curiosidade pelas origens, que se manteve pela vida. Foram 5 os anos de permanência na terra das tuas raízes começando cedo a tua peregrinação pelas terras e pela vida. Desde logo acompanhando a tua irmã que te deu a instrução primária.
FC– Estive depois num seminário...
VT – No final da Guerra os tempos eram difíceis e os meios materiais escassos. Certinho e guicho (como diziam por lá) enviaram-te para os Salesianos de Poiares da Régua. Continuaste os estudos em Mogofores e no Estoril.
FC– Guardo boas recordações desses tempos?
VT– A tua índole pacífica e receptiva permitiu-te passar a adolescência e a juventude sem grandes problemas. A educação era muito completa e agradava-te, pois seguia os princípios do fundador e padagogo, João Bosco, “mens sana in corpore sano”. As recordações só podem ser boas e criaste amizades que perduram.
FC – Vim então para a Escola do Magistério de Bragança...
VT – Nos anos de 1956 e 1957
FC– Anos que me marcaram...
VT– E muito. Foi a fase da tua vida a que chamaste adaptação à sociedade laica. Basta dizer que as primeiras vezes que entravas num café tinhas a sensação de que toda a gente ficava a reparar em ti. Pouco a pouco a timidez foi-se diluindo.
FC – Algum contributo especial?
VT – Eras benquisto e apoiado por todo(a)s os Colegas. Seja-me permitido lembrar o contributo que o colega Arménio deu àtua socialização.
FC – Começou depois o meu percurso profissional...
VT– Longo e se calhar fastidioso para quem lê. Resumindo, exerceste o professorado primário em várias Escolas : Bº de Costa Cabral (Porto), nas Escolas nº 72, 26, 1 e 84 (Lisboa).
FC– Entretanto continuei a estudar
VT – Formaste-te em Filosofia e Ciências Pedagógicas na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.
FC – O que me levou a deixar o professorado...
VT – Nunca. Terminado o curso foste convidado para leccionar no ISLA, então criado, onde permaneceste quase 30 anos. Foste também convidado a ensinar no ISCTE e, depois, na Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação, onde te mantiveste até te reformar.
FC – Mas tive outras actividades?
VT – Nunca te dedicaste em exclusividade ao ensino, que nem foi a tua actividade principal. Logo que concluiste a licenciatura tiveste o privilégio de entrar para um organismo estatal de vanguarda – o Instituto Nacional de Investigação Industrial – que te abriu as portas para uma carreira na área da Psicologia do Trabalho e dos Recursos Humanos.
FC –Que tinha estudado na Faculdade
VT – Nem tanto. Recebeste abundante formação profissional em Psicossociologia das Organizações e Gestão de Recursos Humanos ( França, Bélgica e Genève).
FC – Onde apliquei?
VT– Primeiro na Norma, grande empresa nacional de consultoria e informártica. Colaboraste depois no lançamento do Instituto de Formação dos CTT até que decidiste associar-te à criação de Empresas de consultoria. Foste sócio-fundador da Área-Chave, Consultores Portugueses Associados e partner da Egor Management e Formação.
FC– Um percurso deveras variado e intenso...
VT – De que te podes honrar e sentir orgulho.
FC– Já agora o que me dizes da minha vida familiar e pessoal
VT – 1965 foi um ano marcante para ti: concluíiste a licenciatura, mudaste de actividade e passaste-te para o clube dos casados, com a Manuela, que conheceste numa aula do teu querido Mestre, Vitorino Nemésio, mãe das tuas filhas Lúcia e Maria José. Mas as rosas têm os seus espinhos e a tua vida também os teve: a Manuela faleceu depois de dez anos de grande sofrimento que marcou muito a família. Refizeste a tua vida na companhia da Margarida que, com uma família esplêndida, muito tem contribuído para retomares a felicidade então perdida.
FC – Pensas então que sou um homem feliz
VT – Cumprite aquela norma popular da realização pessoal: escreveste livros, plantaste árvores e tiveste filhos...
FC – Para terminar: projectos
VT – “Carpe diem”. És mais do género de ver o copo “meio cheio” do que “meio vazio”. O teu dia a dia de reformado não tem tempos mortos: a agricultura e jardinagem, a leitura, a música, a escrita, a internet preenchem-te. Ah! e recentemente apareceu outra Margarida, que é como quem diz a netinha que tanto esperavas...

«A troca»

domingo, 8 de Março de 2009

A propósito dos que chama ‘críticos profissionais’ o Zé Magalhães colocou no seu Xeringador uma entrada ineressante («quem quer ser otário») sobre o filme mais premeado este ano pela Academia: «Quem quer ser bilionário». A questão da crítica da obra de arte é, em si, complexa e há poucos critérios objectivos (se é que há alguns) para definir o conceito de Belo. Finalmente, haverá sempre um apelo à sensibilidade subjectiva, se bem que esta também possa ser orientada (mais do que educada). Acabo de ver «A troca». É um thriller realizado por Clint Eastwood a partir de um facto real narrado pelo argumentista Michael Straczynski. A história gira à volta de uma mãe, Christine Collins (Angelina Jolie), que reza fervorosamente para que o seu filho Walter (Gattlin Griffith), sequestrado numa manhã de sábado, volte para casa. Saí do filme e disse para a Margarida: um filme tremendo, que dá que pensar sobre a condição humana e sobre as condicionantes sócio-políticas à liberdade individual. As pressões exercidas por métodos de tortura psicológica são arrepiantes e põem em causa as margens de liberdade do indivíduo mesmo em contexto social de paz. Apesar de nomeado não recebeu qualquer globo dos ‘críticos profissionais’.Vamos, então, ancorar-nos nas opiniões do ‘cidadão comum’? Fui ver os comentários na internet e respiguei:« Um olhar sobre o mundo. Tem vários fins.Uma obra prima sem dúvida. Outra coisa não era de esperar do Clint Eastwood.[ Maria Horta]. «Um filme espectacular, bela interpretação da Angelina Jolie. Aconselho»! 5***** Adorei [Ana]. «Excelente interpretação de Angelina Jolie graças à agilidade do inspector. De notar o pouco realismo face aos sacrificios e à resistencia humana. Um filme previsível mas que merece o nosso contributo.» [Vera Ismai]. «Para quem não é muito apreciador de dramas, mais vale ficar em casa. Eu saí a meio do filme. Gostos não se discutem» [Milton]. «Não vale nadinha o filme!... Filme de gajas....Não percam tempo com isto......».[Delmar Nobre]. Conclusão: se calhar razão tinha Pirandello ao escrever a peça «Para cada um sua verdade».
terça-feira, 1 de Dezembro de 2009

economês
Parte ontem parte já hoje assisti ao programa ‘Prós e Contras’ da TV1 conduzido pela Fátima C. Ferreira - constante interruptora dos participantes: Jacinto Nunes, J. César das Neves, João Salgueiro, A.Carrapatoso, A. Mateus e A. Patrício Gouveia. Ao comentá-lo o meu Amigo e brilhante economista Rui Fonseca, no seu blog “Aliás”, conta uma graça lapidar: ‘Um dia, o António, já farto de ouvir e não perceber o Emídio, disse-lhe: Ó Emídio, importas-te de explicar isso de forma que tu percebas?’. Que grande saída!

Ignorante como sou destas esquisitas (e confusas) economias, mas sequioso de andar informado, assisti pacientemente a todo o debate. E digo pacientemente porque, páginas tantas, parecia-me mais que estavam a serrar presunto do que a sugerir soluções para a crise, sendo o reconhecimento desta o único ponto em que todos convinham.
Uma pobreza de debate entre gente tão ilustre e sabedora. A anedota do Rui fez-me lembrar uma cena na minha transmontana aldeia onde havia dois falares: o normal, do povo e o falar 'fino', da cidade.
Perorava eu 'fino', convencido jovem estudante, sobre já não sei que banalidades, quando o meu tio Jaquim Zé, quase analfabeto mas inteligente, me interrompe: 'ó rapaze fala que t'intenda'). Eu lá entender entendi-os só que fiquei como o brasileiro que sentenciou: 'falou mas não disse'.Vá lá que houve momentos de humor como aquele em que o João Salgueiro propõe que a solução pode estar em saturar os telemóveis de SMS. Palavra que, esquecendo o incómodo que podia causar ao descanso dos vizinhos, não contive estrondosa gargalhada.
Em tempos era costume, nas missas, rezar pelos nossos governantes: 'que Deus os ajude'. Agora apetece-me implorar 'que deus lhes perdõe'.Para não me agitar no sono fui retemperar-me na (re)leitura de belos trechos da "República" de Platão.
Aniversário
Para que serve um aniversário? Poderia ser para celebrar os que faltam mas, na impossibilidade de os calcular,não é despropositado festejar os que já foram. Assim é, e pode-se fazê-lo de muitas maneiras. Uma delas, e não pouco comum, é deixar o habitat costumeiro e sair, de preferência com destino, que o risco da aventura é inversamente proporcional aos que se fazem. Este ano foi Lagos, mas através de itinerário diverso, percorrendo o Alentejo na plenitude do seu Outono soalheiro e variegado. Assim se pôde rever Beja e, das ameias do velho castelo, contemplar a vastidão que nos apouca. Seguir para Mértola, a de beleza e de história cativantes e, breve, chegar a Alcoutim, tão pequena quanto asseada e bonitinha como a carochinha. No ti’Afonso a delícia do guloso cozido de grão e doces regionais. Até Guerreiros do Rio é, como diriam os clássicos e porque em zona de caçadores, um tiro de uma dúzia de quilómetros, roçando o Guadiana e dez minutos de quietude (quase) religiosa. Guerreiros não tem nada para além do Hotel e do pequeno Museu mas tem tudo para quem descobrir, como fez a Margarida, a casa do senhor Carlos Escobar, um dos agora frequentes foragidos da agitação urbana e refugiados nos remansos da quietude rústica. Pequena habitação térrea com presença intensa do azul a ilustrar a paixão pelo belenenses (o Fred vai exultar de vaidade). É homem que tenho de conhecer. Encontro-o no café/taberna ao lado divagando (vulgaridades aliciantes, digo eu que não ouvi) com o pedreiro que faz um qualquer arranjo. Se me permite que fotografe e copie o poema que, em azulejo cuidado, adorna a parede exterior da habitação. «Pois não? Com gosto»:

“São três ruas a subir
São as mesmas p’ra descer
É monte de pouca gente
Força viva de viver.

Tem o nome de Guerreiros
Tem o rio abraçadinho
Tem peixe, paz e amor
E, seja lá p’lo que for
Vejo nele só carinho.

A sua gente é dos campos
Mas o rio também dá pão
Água doce, água salgada
A curtir a pele queimada
E a adoçar o coração.

Tem a norte as laranjeiras
E tem o álamo ao sul
Olhar, ver terras de Espanha
E quem chega nunca estranha
Ter mais sol ter mais azul”.

A modéstia não o instiga, mas vou à internet e leio: «Carlos Escobar “poeta, autor, jornalista, produtor, apresentador radiofónico”». Obrigado Carlos e até sempre.Vila Real é mesmo a um passo, bordejando o agora calmo Guadiana, mas o apetecido arroz de lingueirão não é cozinhado que se sirva em dia de aniversário. Do mal o menos: atravessa-se aligeirado a via do infante até Lagos onde
há tempo para proceder à desforra
Querela
Sobre o recente livro de Saramago, “Caim”, tem-se dito tudo e muito mais. Suspendi a minha opinião até ler o livro, como li os anteriores. Nas análises, nos frente-a-frente, nas entrevistas, debates, diálogos e blogs encontro alguns amores, muitos ódios e poucas imparcialidades. É vasta a legião dos ofendidos, quanto a mim despropositada porque, ou a fé é sólida e não é quemquer que a ofende ou é interesseira e receia concorrência. Parece-me vã a interpretação da Bíblia, se literal se simbólica ou metafórica. As duas coexistem e são legítimas: que Deus tenha criado o mundo em sete dias é, como quem diz, uma maneira de dizer, mas seria trágico não levar à letra o mandamento “não matarás” ou humanamente impossível não violar o outro que diz “não fornicarás” [Êxodo,20 – 13 e 14]. Nunca houve muita sintonia entre as duas dimensãoes da natureza humana, a Razão e a Fé e a verdade é que a expressão desta não facilita a aproximação da Razão : ouço proclamar (não sei com que convicção) no credo das missas :“Deus de Deus, Deus verdadeiro, consubstancial ao pai, por ele gerado e não criado…”. Convenhamos que é demasiado subtil e que bem poderia ser simplificado!
Ora Saramago, na minha leitura atenta, racionalizando não nega a legitimidade da fé dos que a têm (um doutrinador da Igreja, creio que Santo Agostinho, justificava-se sabiamente: “creio porque é absurdo”).
É abuso racionalizar episódios que, preto no branco, vêm descritos na Bíblia? Para a interpretação crente lá estão os exegetas (que estão longe da unanimidade). Para uma mundivisão agnóstica lá está a última frase, para mim a chave para a compreensão do texto: “A história acabou, não haverá mais nada que contar”. E a história é a escatologia de Saramago, simbolizada na pasagem de Caim por este “vale de lágrimas”, cruel e sem sentido porque regida pela lei do crime e castigo sem qualquer vislumbre de redenção.