quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

As parvas

Molhos tirados daquela pirâmide elegante que é a meda, vincelhos desatados, cereal (trigo, centeio, mais raro lentilhas) bem espalhadinho e acamado em círculo quase perfeito – é a parva. O espaço está reservado nas eiras, que as há públicas e privadas, emprestadas e não alugadas, de ano para ano. A parva ali está, pronta para submeter-se ao trilho, peça rasa e rasteira com fundo cravejado com ferrinhos bem cortantes e demolidores. Puxado por vacas, burros, menos vezes muares (mais ariscos e menos domáveis) em voltas lentas e monótonas, repetidas sem qualquer alteração de ritmo. Sobre o trilho pedra para o tornar mais pesado e triturador e o tocador que mantém as crias dentro do circuito obrigatório sem as deixa parar. São voltas e mais voltas à volta da parva até que o grão da espiga seja separado da palha e esta meio moída.Pelo dia adentro a canícula aperta, rapazes e bestas.Aqueles combatem o monótono da tarefa lançando sem grande convicção e, por vezes até com ironia, um desafio para o parceiro do lado com as mesmas angústias, uma cantilena também ela monótona e monocórdica :
-“Bou-me daqui, bou-me e num bolto aqui mais
-Dize-me lá, intão, ó Manel p’ra onde é que bais
-Uma rica prenda que tens e num ma dás
-Qual me darias qual me darás
-Darei-te a Alicinha que é uma mocinha capaz”,
seguindo-se a aceitação
(“essa é bem boa tomara-a eu cá p’ra mim”), ou, então, a rejeição da prenda quando a oferta é maldosa.
As bestas vingam-se da monotonia e da caloraça aliviando o ventre e obrigando o mandante a aparar o excremento na cortiça rasa. Voltas e mais voltas à volta da parva. Julho, Agosto, calor de inferno, sombra só a da meda, quase nula à hora do pico. Cereal moído, palha em cima grão em baixo, segue-se a limpa.
Ouxalá chegue depressa o vento, esse ventinho abençoado que separará a palha do grão, aliviará a canícula dos limpadores e refrescará as gentes da parva. É preciso aproveitá-lo! Com espalhadouras e bendas com cabo e dentes de madeira os limpadores, em gesto largo e elegante de bailarino, lançam a mistura ao ar – aí vai ela – e o vento amigo, bendito seja Deus, fará o resto. A parva é trabalho rural único : envolve a Família, adultos e garotos, é feito perto de casa, é breve e compensador. No fim, grão para as tulhas palha para os palheiros, é a colheita das merecidas vaidades.
(-Que tal a colheita deste ano, Sr.Francisco?
-Bacatela,
resposta com modéstia enganadora).
A parva é trabalho rural único: até há lugar para o acidente, que só não é tragédia pela pronta intervenção dos poucos adultos presentes; o menino, o Fernando, loirinho lindo, o pobrezinho, debaixo do trilho. Gritos de socorro, seguidos de alívio pela relativa suavidade das feridas. Não se ganhou para o susto.
A canícula é grande, mas naquele dia exagerou. As gentes da parva estão sedentas de água. Há-a límpida e fresquinha ali a dois passos na horta do Cimo do Povo do sr.Garai-Garai (perdõe-me Sr. José António, eu sei que não gostava). O pai pede ao rapaz para ir lá encher a cantarinha de barrro, mas este, remoído e contorcido por dentro mais pela rebeldia do que pela dificuldade resiste. Debalde: um «pschiu» seco e grave é mais que suficiente para o pedido passar a ordem indiscutível. Chega a cantarinha, primeiro o mais velho e, à primeira golada, água fora da boca.
-Tu num me fuste à fontela, garoto!
-Fui sim, pai, responde o garrano, que só não mentiu porque não lhe foi perguntado se na bilha tinha feito algum xi-xi.
Também não minto ao dizer-vos que quem ma contou me pediu para não a escrever no jornal. Perdõem-me por não ter respeitado o pedido.

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