segunda-feira, 26 de maio de 2008

A matança das minhas recordações

Que eu me lembre, naquele tempo em Brunhoso só eram conhecidas duas matanças : a dos inocentes, de há dois mil anos e a do porco, de agora. Daquela lembrava-se a malvadez de Herodes, esse facíonora degolador de crianças cuja única culpa era terem nascido quando Jesus. A do porco era singular e única, digo-vos. Matavam-se cabritos e canhonos mas não era matança; matar capoeira (patos, pitas perús e coelhos) era rotina. Até na festa de Santa Bárbara se matava uma ou mais vitelas e ninguém celebrava. Mas matar o porco é que era : dia marcado, reboliço em casa logo de manhãzinha, nervosismo e muita agitação nas mulheres, já que os homens, esses, primeiro, ainda vão acomodar as crias. Deixemos os antecedentes : já se sabe que o verdadeiro porco é criado, não mercado. Como se sabe que a criação é trabalho da dona (porque o porco não tem dono), que o faz com não excessiva atenção, é certo, enquanto leitão e larego (é só vê-lo crescer bem e engordar pouco) mas com esmero e cuidado (cabaças, nabos, bolotas e castanhas em abundância p’rá pia) quando for da ceva. Deixemos a decisão de não o capar a quem o quer berrão ou de não a capar a quem quer reprodução compensadora antes de ir ao sacrifício. Deixemos que vagueie com liberdade pelas ruas, que entre por currais e quintais muitas vezes não permitidos («côche, vai p’rá dona, que isto aqui não é teu»), que vá até às eiras na condição de vir pernoitar na loje. Deixêmo-lo, pois, em liberdade, a liberdade ilusória dos condenados. Agora aproxima-se o tempo de Natal, frio, frio a valer, que enrija a pele dos vivos e conserva as carnes frescas estendidas ou penduradas na despensa. Não há frio para o cevado que, anafado e lerdo mas sempre devorador, mal se move à volta da pia abundante, grunhindo ou roncando, insaciável, à espera de mais.
Deixemos, então, o antes e preparemo-nos para a matança, que será no curral, na curralada ou, até mais frequentemente, na rua, que o que é público é de todos. O ritual que vai iniciar-se pede preparação : antes de matar o bicho «mata-se o bicho» : bom carolo de trigo com linguiça e azeitonas, salpicão e presunto do pernil que ainda resta porque guardado para a ocasião, figos secos, aguardente, coisa leve porque um apetitoso prato de molejas não demorará a ser preparado pelas solícitas mulheres da cozinha. Que, coitadas, não param num vai-vem frenético mas descoordenado, topa-aqui, topa-ali, «fuge-me da frente, garoto», mais pelo receio de fracasso do que por exigência das tarefas.
Laçar o animal (corda no focinho) ainda no cortelho, tocá-lo calmamente para não o enervar até ao banco, deitá-lo, segurá-lo com a corda no pescoço, cruzar-lhe as patas trazeiras para, segurando uma, lhe retirar força da outra, exige paciência, jeito, força e, sobretudo, acção coordenada. Três homens bem orientados chegam. (Não demorar muito as operações para não enervar matador e vítima). E, agora, é que vem a arte, a arte de espetar a faca (raros os que usam a navalha) não para matar de imediato mas para o sangrar bem sangrado, que as carnes querem-se limpas de sangue. A mulher apara e mexe sem parar o sangue que escorre aos gorgolhões ao ritmo do estertor do bicho, caindo em barrinhão com algum vinagre para não tralhar logo. E, por fim, a estocada final, o toque no coração, em golpe seguro e certeiro. E o porco «cuim-cuim» e eu aqui a arrepiar-me só de o escrever (mas livra-te de dizer «coitadinho», pode impedir a morte do reco). Mas, enfim, lá o consegui apelando à então para mim normalidade do acto que, depois, já com muita civilização em cima, viria a ouvir pela boca de sabichões que julgam saber tudo do que não sabem nada, ser uma crueldade, praticada por homens pacatos e bons.
O que se segue é o chamusco : palha trilhada para cima, bem regulada para não lhe queimar o couro, facho de colmo a arder e bem firme nas mãos para controladamente chegar às partes menos expostas (orelhas, focinho, sovacos, unhas), água abundante, pequena cortiça a esfregar o chamuscado e navalhas bem afiadas a raspar os pelos que escaparam ao lume. Ali por perto garotos extasiados acompanham, sorridentes e curiosos, o trabalho dos grandes. Já sabem que a sua glória será conseguir meter uma unha do porco no bolso de algum parceiro menos precavido e provocar a risada geral.
E o corpo teso e limpinho do animal ali está, pronto para o matador o abrir. São as tarefas do fazer : faz-se a barbada que traz o unto, faz-se o cu, com vossa licença, que é tarefa para os mais experientes e também deferência («faça favor, sr.Francisco»). Tripas para um cesto de vime, tapadas com toalha de linho verdadeiro, que as mulheres em breve irão para o ribeiro (não há falta na estação) fazer-lhes a limpeza completa. Terminaram os trabalhos, por hoje: sem tripas e sem miudezas o reco irá, em espeto próprio, para a despensa onde, em posição vertical, esperará até amanhã para ser desmanchado. Não terminou, porém, a matança, a não ser que esqueçamos o “jantar”, que inclui fumeiro bem curado do porco do ano passado e miudezas bem temperadas do deste, porque «o dia da matança do porco...é um bom pretexto para convívios e comilanças, que juntam à volta da mesa familiares, amigos e vizinhos, alguns vindos de longe para a festa» (“Festas e Comeres do Povo Português” -de Mª de Lourdes Modesto e Afonso Praça) ;a não ser que esqueçamos a acção de graças final
(«bendito, louvado e adorado seja o SSº Sacramento do altar e a puríssima conceição da sempre Vigem Maria Senhora nossa, Deus que nos deu p’ra hoje que nos dê p’ra sempre e graça para o servir e a benção desta mesa, assim seja» ); a não ser que esqueçamos a suecada final onde, meu Deus, arrenúncias, carvalhadas, arrotos e vinho em abundância completarão a festa que era o dia da matança.
E agora, sim, que a festa acabou, viva a festa, porque estou como o outro que diz «porco morto cevada ao rabo».

terça-feira, 20 de maio de 2008

Tendeiros

Naquele tempo eram itinerantes típicos de Brunhoso, tais como tecelões, latoeiros e até triteiros. Já não sou é do tempo dos almocreves. Vinham com a tenda carregada em belos machos, oriundos de Campo de Víboras, o povo chava-lhes camponeses e dizia que eram judéus.
Famoso foi o ti’Derranga. Tinha uma cadelinha muito brava – a «Mil e Um». Um dia, ainda muito cedinho, vinha fazer o negócio e logo à Cruz a cadela atacou um perdigueiro do sr. Júlio Gonçalves e matou-lo.
Boa pessoa como era o Sr. Júlio perdoou-lhe na condição de ir para o povo a gritar : «morra mil e um». Lá foi o Derranga gritando «morra mil e um», «morra mil e um», «morra mil e um»...Ainda não tinha entrado no povo e logo ali à Urreta deparou-se com o Sr. Horácio, pastor do Sr. João Lagoa, a quem morriam sem se saber porquê canhonos velhos e novos. Ao ouvir gritar o Derranga o pastor ralhou-le:
-Ou, Sr.Se quer gritar grite mas é «ouxalá que num morra nium». E o Derranga lá entrou no povo aos gritos «ouxalá que num morra nium», «ouxalá que num morra nium» «ouxalá que num morra nium».....
Mal chegou ali à frente daquela curralada que é do sr. Aragão estava o sr. Alfredo Neto a matar um porco ao sr. Antoninho Felgueiras. Pândego como era o sr. Alfredo berrou, cheio de risa, para o Derranga:
-Ó home de Deus, mude a gaita e bote-le mas é: «com saúde o comam marido e mulher». Meu dito, meu feito e o Derranga: «com saúde o comam marido e mulher», «com saúde o comam marido e mulher», «com saúde o comam marido e mulher».....
Desceu ali por aquela canelha que ainda lá está, e num dos quintais ao lado donde está o bebedouro, que era da minha madrinha, a srª Marquinhas Ruela, atrás duma parede estava o sr. Tibério a arrear o calhau. Ofendido, grita-lhe com a sua típica voz fininha:
-Seu malvado, o que vocemecê deve gritar é mas é: «as pitas o ranhem e os porcos o focem». Lá seguiu o Derranga... «as pitas o ranhem e os porcos o focem», «as pitas o ranhem e os porcos o focem», «as pitas o ranhem e os porcos o focem»...Logo ali ao lado, no Pereiro, estava um moço do sr. Antoninho Acácio, o Chico Césaro, a fazer uma sementeira de ferranha. Calculem lá como o rapaz não ficou. Cada vez mais desesperado o ti’Derranga:
-Já num sei o q’hei-de dezer!
-Olhe, carai, diga «ouxalá c’arrebente todo»
E o Derranga «ouxalá c’arrebente todo», «ouxalá c’arrebente todo», «ouxalá c’arrebente todo». Virou p’rós lados do Fundão e, frente à taberna da srª Maria Cecília, estavam uns homens a descarregar um pipo de vinho que, com um estremeção, tinha arrombado uma greta por onde estava a esvaziar.
-Ó home, já s’arramou c’abonde, grite lá «ouxalá que num saia nium». E a gritar «ouxalá que num saia nium», «ouxalá que num saia nium», «ouxalá que num saia nium» passou frente ao adro onde estava o sr. Martinho Capador a capar um berrão à srª Maria dos Anjos. Engraçado como era o sr. Martinho às gargalhadas mandou-o gritar «ouxalá que saiam os dois». E o Derranga obedecendo : «ouxalá que saiam os dois», «ouxalá que saiam os dois», «ouxalá que saiam os dois». Já mais que desorientado chega às Eiras de Cima onde enfrenta o ti’ Sidré a correr atrás de um dos porcos que lhe tinha fugido pela tampa do cortelho. Como não era para brincadeiras gritou-lhe: vá p’ró rai que o parta mas é a gritar «ouxalá que não saia p’la tampa». Em fim de desespero o Derranga entra ali ao lado no Cemitério com as forças que lhe restavam «ouxalá que não saia p’la tampa», «ouxalá que não saia p’la tampa», «ouxalá que não saia p’la tampa». Estava o sr.Chico Lindo a enterrar um morto. Levanta a cabeça, olham por instantes um para o outro, dão ambos uma gargalhada e abraçam-se.
«E ainda lá estão assim» - concluia muito a sério a minha avó Luisa – a srª Luisa Carpinteira – que, com aquela argúcia de analfabeta me contou esta história “verdadeira” (porque para mim naquela idade a fantasia valia mais que a realidade) faz hoje precisamente 65 anos 4 meses e 22 dias. Foi a sua conclusão que incutiu em mim um misto de respeito-mistério pelo cemitério de Brunhoso, que perdura.
Agora digam lá que os nossos antigos não tinham imaginação...
[dos olmos]

sexta-feira, 16 de maio de 2008

O meu Amigo Rui Fonseca escreveu no seu blog «aliás» condenando os Ministros que fumaram no avião para Caracas, o que foi multado por excesso de velocidade eo presidente da ASAE por ter fumado no Casino.
É interessante o relacionamento entre a lei promulgada, o seu (in)cumprimento e a ética. Apesar de a lei ser uma superestrutura (Marx dixit) é suposto estar ao seviço (bem) da comunidade, que são todos os que, voluntária ou involuntàriamente, a aceitam. O seu cumprimento é, porém, mais da esfera do cívico do que do ético (discordo da obrigatoriedade do uso do cinto no automóvel mas uso-o para fugir à multa). Já o maior legislador grego, Sólon, falava em leis iníquas. A prova do carácter cívico da lei é a penalização pelo incumprimento. Assim, tão cívico será cumprir a lei como pagar pelo seu incumprimento. É o carácter cívico da lei que lhe confere o atributo da generalização. Teoricamente "nenhuma regra tem excepção". Quando Ministros ultrapassam a velocidade permitida por lei ou fumam em locais proibidos estão ne mesma situação que qualquer outro cidadão. Não é a posição social que torna a infracção à lei mais ou menos condenável, porque não é a posição social que confere mais ou menos obrigatoriedade de cumprimento. O carácter da lei é ser geral. Discordo, em absoluto, da maior ou menor gravidade do incumprimento de acordo com a posição social. Assim, os Ministros - primeiros ou segundos - não são mais nem menos criticáveis pelo incumprimento. Do ponto de vista político considero uma enorme desproporção o relevo que a comunicação social dá a essas prevaricações (já nem falo do aproveitamento político dos partidos). Condenável é - do meu ponto de vista -andar à procura de excepções caricatas, do tipo advogado de defesa, como a de que o avião era fretado ou de que a legislação para Casinos é especial . Argumentar que os políticos têm de dar o exemplo - como me diz a minha filha - é falácia, porque o exemplo todos temos que dar (aos subordinados, colegas, alunos, filhos...).